Lei Maria da Penha completa 19 anos sob desafio de tirar a proteção do papel

Especialistas apontam que avanço legislativo não tem sido suficiente para frear o aumento da violência contra as mulheres.

Apesar de considerada uma das legislações mais avançadas do mundo no enfrentamento à violência doméstica, a Lei Maria da Penha chega aos 19 anos, nesta quinta-feira (7), sem conseguir conter o crescimento dos crimes contra mulheres no Brasil. O diagnóstico é reforçado pelos dados do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que escancaram a distância entre o que a lei propõe e a realidade vivida pelas vítimas.

Os números são alarmantes: quatro feminicídios por dia e mais de dez tentativas de assassinato, sendo que, em 80% dos casos, o agressor é o companheiro ou ex-parceiro da vítima. A falta de políticas públicas estruturadas e a dificuldade na articulação entre os serviços de atendimento impedem que a legislação cumpra seu papel de forma plena.

Proteção falha

Um dos dados mais impactantes do anuário revela que ao menos 121 mulheres foram assassinadas nos últimos dois anos mesmo estando sob medida protetiva de urgência. Das mais de 555 mil medidas concedidas em 2024 — o equivalente a 88% das solicitadas — mais de 100 mil foram desrespeitadas pelos agressores.

Para a pesquisadora Isabella Matosinhos, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, esse instrumento legal, apesar de essencial, tem se mostrado ineficaz em muitos casos. “As políticas públicas precisam passar a olhar para os casos em que ela [a medida protetiva] é infringida. Esse é o desafio: entender por que ela falha e como evitar que essas falhas levem à morte de mulheres”, aponta.

Desde 2019, as medidas podem ser concedidas diretamente pela autoridade policial — e não apenas pelo Judiciário. Ainda assim, a fiscalização e o acompanhamento das ordens seguem frágeis, especialmente em regiões afastadas dos grandes centros urbanos.

Falta de integração

Um dos pilares da Lei Maria da Penha é o atendimento em rede, que prevê a atuação conjunta de diferentes setores como saúde, assistência social e segurança pública. No entanto, a articulação entre esses serviços ainda é considerada deficiente.

“É muito difícil que exista o funcionamento integrado dessas redes. Falta estrutura, investimento e prioridade política”, afirma Isabella. Ela destaca também que a responsabilidade da polícia não pode se limitar a ações pontuais: é necessário monitoramento contínuo dos agressores para garantir o cumprimento das medidas.

Para a professora Amanda Lagreca, pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG e colaboradora do anuário, a efetividade da lei depende do compromisso das instituições em executá-la na prática. “Não basta uma legislação exemplar. É preciso garantir que ela seja aplicada de maneira adequada, considerando a complexidade da vida das mulheres brasileiras”, defende.

Desigualdades e violência

As estatísticas revelam ainda o recorte racial e etário da violência de gênero no Brasil. Em 2024, 63,6% das vítimas de feminicídio eram mulheres negras, e 70,5% tinham entre 18 e 44 anos. A maioria das mortes aconteceu dentro de casa, local que deveria ser de proteção e segurança.

“A maioria dessas mulheres morre por ser mulher, por isso dizemos que a violência de gênero é um gargalo da democracia brasileira”, afirma Amanda.

Educação e prevenção

Além das medidas emergenciais, a Lei Maria da Penha também prevê ações educativas, como a participação dos agressores em grupos reflexivos. Apesar disso, o foco em aumentar penas ainda predomina no debate legislativo, enquanto ações preventivas e educativas seguem tímidas.

Amanda ressalta que a lei foi uma conquista da sociedade civil e representa um marco no reconhecimento da violência contra a mulher como violação de direitos humanos. Mas, para ela, é urgente ocupar espaços de formação como escolas, para trabalhar a prevenção desde cedo. “É preciso ensinar que a violência contra a mulher é inaceitável”, afirma.

Um dos avanços recentes foi o reconhecimento da violência psicológica como forma de agressão, ampliando o escopo da proteção legal.

Cultura e compromisso

Prevenir as primeiras agressões, segundo as pesquisadoras, exige mudança cultural, além de investimentos em políticas públicas consistentes. “A lei não dá conta sozinha. O Estado precisa garantir que a mulher tenha onde buscar ajuda e que essa ajuda seja eficaz”, pontua Isabella.

Apesar dos desafios, elas reiteram a importância da Lei Maria da Penha como instrumento essencial no enfrentamento à violência. “Ela continuará sendo uma ferramenta de combate, desde que acompanhada de ações concretas”, conclui Amanda Lagreca.

Ministério das Mulheres lança painel interativo do Ligue 180

Canal oficial e gratuito de denúncias, o Ligue 180 funciona 24 horas por dia, inclusive aos feriados, e oferece atendimento em português, inglês, espanhol e Libras, tanto no Brasil quanto no exterior. Desde 2023, o serviço tem sido reformulado, com destaque para a ampliação da equipe e a qualificação das atendentes, agora mais preparadas para lidar com interseccionalidades e diversidades, incluindo mulheres indígenas, quilombolas, com deficiência e LGBTQIA+.

Atualmente, a Central conta com 288 atendentes especializadas e um total de 332 profissionais. Entre as novidades do sistema estão os atendimentos por WhatsApp (61 9610-0180), videochamada em Libras e e-mail (central180@mulheres.gov.br). A atualização tecnológica também permitiu mais agilidade no registro e no tratamento das denúncias.

Outro avanço significativo é o próprio Painel Ligue 180, que além dos dados de violência, reúne informações sobre mais de 2,6 mil serviços especializados da Rede de Atendimento à Mulher. O painel permite que os dados estejam acessíveis ao público e sirvam como base para a construção de políticas públicas mais eficazes.

Acesse aqui o Painel de Dados do Ligue 180.

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